Depois de mais de 30 anos vindo às reuniões da CITES – e de outros tratados internacionais de “uso sustentável dos recursos naturais”, como a Comissão Internacional da Baleia – as pessoas me perguntam por que é que eu fico tão irritado quando falo dessas reuniões. É de fato uma pena que outros ambientalistas e gestores ambientais brasileiros não possam assistir em primeira mão o que se passa nessas reuniões, os conchavos de bastidores para atender a objetivos de grupelhos que se beneficiam do abuso sobre as espécies silvestres e ecossistemas, a hipocrisia dos Estados, a inutilidade dos compromissos assumidos por países que não têm a menor intenção de cumpri-los. Talvez em nenhum outro instrumento internacional isso fique tão pornograficamente claro como na CITES, que deveria estar protegendo as espécies ameaçadas pelo comércio internacional, e muitas vezes fracassa rotundamente nessa missão, por conta da falta de compromisso de membros proeminentes da comunidade internacional.
Os elefantes tomam boa parte do tempo da CITES, e por boa razão – eles estão sendo exterminados por um fluxo incessante e ilegal de tráfico de marfim para fazer ornamentos cafonas nos países asiáticos, principalmente China, e também para atender a “colecionadores” norte-americanos. Apesar da proibição vigente do comércio, a matança continua. Dos elefantes das savanas africanas, 110.000 – cerca de 30% da população ainda existente – foram exterminados nos últimos anos apesar das proibições de comércio em muitos dos países de distribuição da espécie. O relaxamento escandaloso dos controles alfandegários nos países consumidores é o grande responsável desse verdadeiro massacre que se processa a olhos vistos e apesar de diferentes iniciativas para estancá-lo. Estão em discussão nesta Conferência propostas de alguns dos países do sul da África – Namíbia, Zimbabwe e África do Sul para retomar o comércio legalizado de marfim, o que só serviria para aumentar a pressão sobre os elefantes e dar cobertura a um contrabando ainda maior. Felizmente, as primeiras propostas nesse sentido já estão sendo rejeitadas, em antecipação de um grande debate que será realizado na próxima segunda-feira sobre este tema e outro ainda mais escabroso, o tráfico de chifres de rinocerontes para a ridícula e ineficiente “medicina tradicional” chinesa. O que fazer, entretanto, para acabar com o comércio ilegal? Ninguém parecer ter a resposta o querer investir os recursos necessários, e por enquanto de concreto apenas as atitudes louváveis dos governos como Quênia que estão queimando seus estoques de marfim para evitar que a expectativa da retomada de algum comércio legal aumente ainda mais a mortandade de elefantes para estocá-lo com vistas à venda futura.
É preciso notar, entretanto, que não apenas as espécies mais icônicas como elefantes, rinocerontes e tubarões estão sendo ameaçadas pela bestialidade da demanda absolutamente irracional de partes de animais para alimentar ora a vaidade, ora a taradice, ora a ignorância humana. Vejamos por exemplo o caso dos calaus – belíssimas aves da família Bucerotidae, cuja distribuição é restrita às florestas tropicais da África, Ásia, Filipinas e parte da Melanésia. Como todos os animais de médio ou grande porte encarcerados nos ambientes naturais restantes num planeta com 9 bilhões de macacos pelados predadores, os calaus já enfrentavam problemas de conservação pela destruição de habitats e caça (ah sim, as tais “comunidades tradicionais” que geram as florestas vazias com sua depredação). Aí algum desgraçado descobriu que o bico massivo característico de uma espécie em particular, o calau-de-capacete, podia ser entalhado como um substituto muito similar do marfim de elefantes. Foi o que bastou para os traficantes e contrabandistas chineses se atirarem sobre os calaus, causando uma hecatombe sem precedentes nas suas populações. Como muitas espécies que acabam sendo engolidas pelas máfias chinesas do tráfico de fauna, a CITES parece impotente para salvar esta do massacre. Sabendo-se impotente e talvez na esperança de algumas migalhas de controle, a Secretaria da CITES faz salamaleques bizarros para o governo chinês, elogiando seu “compromisso com a conservação”, o que soa a nós, pagantes de impostos que sustentamos essa Secretaria, como uma piada de muitíssimo mau gosto.
Quase ninguém fora da África e partes da Ásia austral já ouviu falar nos pequenos e simpáticos pangolins, um equivalente ecológico dos tatus neotropicais. Com espécies distribuídas em partes da Ásia e África, era até recentemente um gênero impactado de maneira esporádica por caça e perda de habitat. Agora, os pangolins tornaram-se os mamíferos mais traficados no mundo para atender aos gananciosos que o vendem e aos imbecis que o compram para a vigarice da medicina “tradicional” chinesa e para artesanatos de muito mau gosto feitos com suas escamas corporais. A aprovação das propostas que proibiram todo o comércio internacional de pangolins foi a primeira grande boa notícia da Conferência. A China, claro, falou contra, mas não prevaleceu.
Não obstante a Ásia, em particular o eixo do mal China-Japão, seguir na dianteira global absoluta como malfeitores do tráfico de espécies ameaçadas, coletores de “curiosidades” da Natureza do mundo inteiro concorrem para o genocídio de plantas e animais que cometeram o desatino evolutivo de serem coloridos, exóticos ou raros. É assim que colecionadores (ou melhor dito, receptadores) do mundo inteiro estão causando o desaparecimento dos Nautilus, moluscos oceânicos de profundidade cujas conchas vistosas encantam quem têm o privilégio de observar esses animais no mar – e infelizmente despertam a cobiça de quem quer observá-los numa estante. Atualmente, dezenas de milhares de conchas são traficadas internacionalmente. Por isso mesmo está em pauta aqui a restrição ao seu comércio.
E segue o debate sobre os tubarões e raias, com a expectativa de se votar no final de semana as propostas para restrição ao comércio internacional dos tubarões-raposa, tubarão-sedoso e raias-móbula. Para reforçar a importância das propostas, os países insulares dos oceanos Índico e Pacífico – Maldivas, Sri Lanka, Fiji e outros – fizeram um seminário excelente demonstrando a importância econômica dos usos não-extrativos dos tubarões e raias através do Mergulho e Ecoturismo, e também a sua importância cultural para os diferentes povos dessas regiões. Finalmente, essa Convenção dominada por interesses de traficantes de animais mortos e plantas arrancadas está começando a escutar, e a reconhecer, os direitos daquelas comunidades e países que vivem da conservação esclarecida, e não da depredação irresponsável, da biodiversidade. Isso tem uma imensa importância para o futuro da conservação, porque em geral a CITES e outros tratados apenas escutam o mimimi sobre livelihoods de quem faz demagogia pseudo-social para justificar a matança das espécies selvagens. Graças aos corajosos ilhéus e, imodestamente, a alguns gatos-pingados como nós, que através do Divers for Sharks estamos buzinando a paciência nessas reuniões desde 2010 com a importância dos usos não-extrativos, agora essa bobajada não é mais unânime nem hegemônica.
Para nossa satisfação, a delegação brasileira segue tendo uma atuação bastante vigorosa e vocal a favor da conservação, em particular das espécies mais ameaçadas e reforçando, a partir da política de Estado brasileira, que a biodiversidade tem outros valores sócio-econômicos que não apenas o tráfico de espécies. Pela primeira vez em 31 anos de CITES ouvi um diplomata brasileiro falar aqui da importância do Ecoturismo. O período de mutismo de conveniência no tocante a nossa responsabilidade para com outras espécies que não apenas as nossas parece, enfim, ter acabado, e isso é muito bom.
Ainda há vários dias de CoP17 da CITES para que as coisas dêem errado para as espécies ameaçadas pelo tráfico. Mas felizmente tem muita gente empurrando pra dar certo. Veremos o que acontece como resultado do choque de interesses que fazem subir a poeira nos acarpetados salões por onde, apesar da companhia de algumas das mais importantes figuras do ativismo ambiental global, somos obrigados também a passar por alguns dos mais abjetos canalhas da devastação ambiental e resistir ao ímpeto de dar-lhes o que merecem, ao menos uma vez. Noto que a cada reunião o ímpeto é maior e a resistência a fazê-lo, menor. Acho que é hora de me aposentar disso.
Postado por Carlos PAIM
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